Dra Sonia Casanova – Coordenadora de Odontologia da DRA

Em 2019, minha filha assistiu uma palestra na faculdade, feita pela ONG Doutores da Amazônia, e voltou super entusiasmada querendo participar de uma missão. Eu fui com ela porque tinha medo de que minha filha fosse sozinha.  Não conhecia a ONG, tinha medo, não sabia nada sobre os povos indígenas naquele tempo. Ela insistiu tanto que então achei melhor ir junto. E conheci o Dr. Caio nas reuniões que precederam a viagem. A missão em questão foi junto ao povo Paiter Suruí, em Rondônia. Aconteceu que eu achei muito interessante, aprendi várias coisas, inclusive profissionalmente, entre elas, a manejar o CAD CAM, um sistema utilizado para manufatura de próteses. Essa tecnologia permite escanear a arcada dentária do paciente, criar o projeto da prótese e confeccioná-la em questão de minutos.  Quem me ensinou a operar esse sistema foi o professor De Luca, profissional sensacional, grande entendedor do processo. Embora tivesse mais de 30 anos de formada, de ter experiência na maioria das especialidades, inclusive em prótese dentária, não sabia se eu me encaixaria nesse tipo de missão, se poderia agregar ao grupo.

Foi a minha primeira incursão nesse mundo que era totalmente desconhecido. Embora seja o meu país, a Amazônia e a realidade dos indígenas são muito diferentes ao vivo, do que a ouvimos falar aqui no Sudeste, é um tema absolutamente obscuro e desconhecido para nós.

Passado um mês e meio dessa missão na Amazônia, o Dr. Caio me convidou para fazer parte da primeira grande missão no Xingu, que seria no mês seguinte. Fiquei surpresa, pois eu só tinha participado de uma missão e vi que meu trabalho estava sendo reconhecido.

Eu sempre digo que além de ser um bom profissional, o voluntário da missão precisa ter jogo de cintura, apresentar um perfil aventureiro porque ele vai passar 20 dias em condições um pouco extremas em relação às necessidades básicas, como também conviver em grupo.

Eu tenho uma personalidade voltada para esse tipo de atitude que a ONG Doutores da Amazônia me apresentou, sou uma profissional com bastante experiência, achei muito interessante o jeito que me acolheu e pude servir de exemplo em várias situações. Nessa missão eu e a Priscila ficamos responsáveis pelo CAD CAM, o que foi um grande ganho técnico, pois o desafio era manejar o sistema num lugar onde dependemos de gerador e de cabo de rede, se se tiver uma falha no sistema vai demorar 16 horas para o cabo de rede chegar na aldeia. No Xingu, a gente anda de balsa, de avião, de barco, de carro, temos que pensar nessa logística.

Essa missão no Xingu foi impactante pois, além de ter aprendido a parte técnica com os profissionais da mesma área, foi muito interessante ver como pessoas de profissões, idades e ideias diferentes, numa situação de dificuldade tendem a se ajudarem, a compartilharem seu conhecimento. Foi muito rico vivenciar essa união.

Com o tempo eu fui aprendendo que comunidades indígenas do Xingu são muito diferentes entre si, cada uma é um universo, com seus cultos, suas crenças e o seu próprio idioma. Na verdade, os indígenas são poliglotas, muitos deles falam dois, três idiomas e mais o português. Outra particularidade são os adornos, o artesanato colorido e vibrante.

E depois, eu conheci esse universo indígena tão peculiar, antropológico, brasileiro, esse patrimônio mundial. Foi aí que eu que entendi um pouco mais sobre a nossa história e evolução da nossa sociedade. É interessante ver como os costumes dos indígenas são diferentes, por exemplo, no Xingu, quando a menina tem a primeira menstruação ela se isola dentro da oca para aprender as tarefas domésticas, só sai para tratamento. Fica por um, dois, três anos até que a sua mãe a libere para o convívio na aldeia.

Eu já fui quatro vezes para o Xingu, quanto mais tenho contato com os indígenas percebo que os seus costumes não são aleatórios, são frutos de uma série de lógicas que se aplicam ali. Não dá para comparar com a nossa forma de viver e pensar. Com o tempo, tudo aquilo que choca, por mais que não faça sentido para nós, a gente aprende que tem um porquê e passa a ver as coisas de uma forma mais aberta.

Outro fato que eu queira colocar é que em 2018 tive um problema de saúde muito sério, dei uma volta na morte, driblei e passei por cima. Sempre fui uma pessoa cuidadosa, muito preocupada e, apesar de gostar de aventura, sabia que a Amazônia tinha seus perigos, mas, como eu tinha passado por essa experiência, tive um certo desapego. Como qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento, por que eu vou me furtar de viver coisas se eu não sei o dia de amanhã? Então vou viver essa vida com intensidade porque tenho muito a ganhar dando passos e muito a perder se ficar estática.

Durante a missão é preciso subir em caminhão, descer ribanceira de rio, andar em terreno com buracos, atividades que exigem força física e muscular para aguentar. A gente tem hora para começar, mas não tem hora para acabar e além do mais, as condições de trabalho são bem diferentes de um consultório, embora a parte de equipamentos seja muito boa, nos sentamos em cadeiras de escola e os pacientes se sentam em cadeiras de praia. Como eu fui gostando muito do processo, investi no preparo físico em função da minha idade e dos problemas de saúde que tive. Nas missões, eu trabalho dez vezes mais do que no meu consultório, é uma puxada muito difícil, não é todo mundo que segura. Essa disciplina para ganhar força e resistência acrescentou muito na minha vida.

Bom, aprendizado na vida é uma constante e quanto mais situações diferentes nos deparamos, maior é a chance de aprendermos. Você pode escolher aprender com aquelas situações ou reclamar e achar que é difícil e não ir mais.

Para finalizar, eu lembrei que abracei o Caio na margem do rio e agradeci por ter a oportunidade de passar por experiências muito marcantes.